segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Jogos Frutais

Tem um poema bem bonito do João Cabral que li numa noite chuvosa de outono. Acho que foi a partir destes versos que comecei a gostar do poeta, não sei se pelas sensações que me acendem, de uma sinestesia necessária, ou se pela boa escrita. Acho que os dois juntos...
Hoje senti vontade de relê-lo, agora sem chuva mas com uma noite gostosa que as horas insistem em atravessar...



Jogos Frutais

De fruta é tua textura

e assim concreta;
textura densa que a luz
não atravessa.
Sem transparência:
não de água clara, porém
de mel, intensa.

Intensa é tua textura
porém não cega;
sim de coisa que tem luz
própria, interna.
E tens idêntica
carnação de mel de cana
e luz morena.

Luminosos cristais
possuis internos
iguais aos do ar que o verão
usa em setembro.
E há em tua pele
o sol das frutas que o verão
traz no Nordeste.

É de fruta dó Nordeste
tua epiderme:
mesma carnação dourada.
solar e alegre.
Frutas crescidas
no Recife relavado
de suas brisas.

Das frutas do Recife.
de sua família.
tens a madeira tirante.
muito mais rica.
E o mesmo duro
motor animal que pulsa
igual que um pulso.

De fruta pernambucana
tenso animal,
frutas quase animais
e carne carnal.
Também aquelas
de mais certa medida,
melhor receita.

o teu encanto está
em tua medida,
de fruta pernambucana,
sempre concisa.
E teu segredo
em que por mais justo tens
corpo mais tenso.

Tens de uma fruta aquele
tamanho justo; .
não de todas. de fruta
de Pernambuco.
Mangas,mangabas
do Recife. que sabe
mais desenhá-las.

És um fruto medido.
bem desenhado;
diverso em tudo da jaca,
do jenipapo.
Não és aquosa
nem fruta que se derrama
vaga e sem forma.

Estás desenhada a lápis
de ponta fina.
tal como a cana-de-açúcar
que é pura linha.
E emerge exata .
da múltipla confusão
da própria palha.

És tão elegante quanto
um pé de cana,
despindo a perna nua
de dentre a palha.
E tens a perna
do mesmo metal sadio
da cana esbelta.

o mesmo metal da cana
tersa e brunida
possuis, e também do oiti,
que é pura fibra.
Porém profunda
tanta fibra desfaz-se
mucosa e úmida.

Da pitomba possuis.
a qualidade
mucosa, quando secreta,
de tua carne.
Também do ingá,
de musgo fresco ao dente
e ao polegar.

Não és uma fruta fruta
só para o dente,
nem és uma fruta flor,
olor somente.
Fruta completa:
para todos os sentidos,
para cama e mesa.

És uma fruta múltipla,
mas simples, lógica;
nada tens de metafísica
ou metafórica.
Não és O Fruto
e nem para A Semente
te vejo muito.

Não te vejo em semente,
futura e grávida;
tampoucoem vitamina,
em castas drágeas.
Em ti apenas
vejo o que se saboreia,
não o que alimenta.

Fruta que se saboreia,
não que alimenta:
assim descrevo melhor
a tua urgência.
Urgência aquela
de fruta que nos convida
a fundir-nos nela.

Tens a aparência fácil,
convidativa,
de fruta de muito açúcar
.que dá formiga.
E tens o apelo
da sapota e do sapoti
que dão morcego.

De fruta é a atração
que tens, a mesma;
que tens de fruta, atração
reta e indefesa.
Sempre tão forte
na carne e espádua despida
da fruta jovem.

És fruta de carne jovem
e de alma alacre,
diversa do oiti-coró
porque picante.
E, tamarindo,
deixas em quem te conhece
dentes mais finos.

És fruta de carne ácida,
de carne e de alma;
diversa da do .mamão,
triste, estagnada.
É do nervoso
cajá que tens o sabor
e o nervo-exposto.

És fruta de carne acesa,
sempre em agraz,
como araçás, guabirabas,
maracujás.
Também mangaba..
deixas em quem te conhece
visgo, borracha.

Não és fruta que o tempo
ou copo de água
lava de nossa boca
como se nada.
Jamais pitanga,
que lava a Iínguae a sede
de todo estanca.

Ácida e verde, porém
já anuncias
o açúcar maduro que
terás um dia.
E vem teu charme
do leve sabor de podre
na jovem carne.

Aumentas a sede como
fruta madura
que começa a corromper-se
no seu açúcar.
Ácida e verde:
contudo, a quem te conhece
só dás mais sede.

Ao gosto limpo do caju,
de praia e sol,
juntas o da manga mórbida,
sombra e langor.
Sabes a ambas
em teus contrastes de fruta
pernambucana.

Sem dúvida, és mesmo fruta
pernambucana:
a graviola, a mangaba
e certas mangas.
De tanto açúcar
que ainda verdes parecem
já estar corruptas.

És assim fruta verde
e nem tão verde,
e é assim que te vejo
de há muito e sempre.
E bem se entende
que uns te digam podre e outros
te digam verde.


João Cabral de Melo Neto



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